Capitão América: A Verdade escancara o racismo estrutural

Carlos Bazela

A série Falcão e o Soldado Invernal, do Disney+ (leia nosso review), teve muitos pontos impactantes. Dentre eles, a ousadia de trazer ao grande público a história de Isaiah Bradley, aquele que ficou tachado como “Capitão América negro. Mesmo sendo um velho conhecido dos leitores de quadrinhos, Bradley tinha sua história de origem – intitulada Capitão América: A Verdade – Vermelho, Branco e Negro – ainda inédita no Brasil. Algo que a Panini corrigiu neste ano, como parte das celebrações dos 80 anos do Sentinela da Liberdade e, gentilmente, enviou um exemplar para o BN.

Na obra, escrita pelo finado Robert Morales e ilustrada por Kyle Baker, acompanhamos o jovem Isaiah Bradley e seus companheiros, um pelotão inteiro de soldados negros, que vai para o front da Segunda Guerra Mundial depois do ataque japonês a Pearl Harbor, incidente que fez os Estados Unidos entrarem no conflito.

Lá, Bradley e seus parceiros acabam tendo mais do que a cor da pele em comum, como o fato de serem tratados como lixo por todo o regimento e, principalmente, por serem considerados dispensáveis o suficiente para serem usados como cobaia nos misteriosos experimentos do Sr. Tully, do Dr. Reinstein e do Coronel Walker Price, cujo objetivo é desenvolver uma fórmula química capaz de amplificar a força e os sentidos do pelotão.

Com seus companheiros de unidade morrendo um a um, seja em missões ou pelos efeitos de uma versão ainda rudimentar do Soro do Super Soldado, Bradley logo é o único da tropa que permanece saudável suficiente para uma última missão. Uma que ele quer realizar usando o uniforme que era merecido, mas foi negado a ele e todos os seus confrades: o do Capitão América.

Invisibilidade em evidência

Em uma das páginas de A Verdade, Larsen (membro do esquadrão de Bradley) questiona se o porquê da quantidade de treinamentos noturnos é para ver se ele e os outros ficam invisíveis. Não por acaso, o humor ácido do soldado faz ligação justamente com outro tipo de invisibilidade: aquela que se refere a todas as coisas que não foram feitas por pessoas brancas.

Isso fica evidente nas passagens nas quais Steve Rogers, já nos dias de hoje, busca descobrir informações sobre o paradeiro de Bradley. Conversando com o Agente Spinrad, que é negro, após interrogar um criminoso de guerra nazista, o Capitão fica surpreso ao ser a única pessoa na sala que ainda não havia ouvido falar do homem, enquanto sua história, ou o que se sabe sobre ela, parecia ser bem conhecida na comunidade afro-americana.

A ignorância de Rogers, que faz o papel de qualquer leitor branco da HQ, tem nome: racismo estrutural. Sendo assim, por mais que você não se considere uma pessoa racista, assim como o Cap não se vê dessa forma, a falta de registros históricos de figuras públicas negras importantes – fora dos esportes e entretenimento – contribui para que nosso conhecimento sobre eles seja bem menor do que deveria. Para se ter ideia, o advogado abolicionista Luiz Gama, por exemplo, só foi reconhecido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 2015.

A Verdade ainda mostra como esse desconhecimento é perigoso, uma vez que abre margem para articulações de segregação racial, o que deixa Steve Rogers perplexo e irado. Afinal, para alguém cujo propósito de vida sempre foi destruir os ideais nazistas, ver que seu país partilhou de muitas ideias de eugenia – das quais ele mesmo é fruto – fomentadas por eles, é uma pancada e tanto. A qual ele não vai deixar de revidar.

Contraste de arte e roteiro

Ler Capitão América: A Verdade é estar pronto para levar uma porrada atrás da outra e ser bombardeado pelo racismo sofrido pela população negra das mais variadas formas. Contudo, o traço quase cartunesco de Baker equilibra o peso do texto de Robert Morales, cuja experiência como jornalista costura incrivelmente bem personagens e referências reais (explicadas no prefácio) com o cânone fictício do herói da Marvel, criando uma atmosfera verossímil.

Não fosse a arte de Baker, seria bem mais difícil terminar a HQ. Mas, a parte gráfica não foi escolhida apenas para aliviar a narrativa. A se considerar pela forma positiva como o gibi termina, isso também foi uma maneira de trazer um fio de otimismo à obra. Afinal, tudo que podemos fazer por quem foi apagado pela história é usar de um injusto privilégio de cor para honrar seus nomes e reconhecer seus feitos. Garantindo que isso jamais aconteça de novo.

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