É preciso ser à prova de balas para sobreviver em um mundo que historicamente não lida bem com as diferenças, e esse é o caso de Luke Cage. Na terceira série produzida pela Netflix em parceria com a Marvel (as outras são Demolidor e Jessica Jones), o primeiro super-herói negro a estrelar suas próprias aventuras nas HQs mostra por que é um colosso da cultura negra. Superior, a atração celebra a tradição afro-americana na música, política, TV e nos esportes, aborda problemas como as tensões raciais nos Estados Unidos e outras questões sociais atuais e, entre tudo isso, ainda narra uma das melhores histórias de heróis já contadas.
Seguindo a ordem cronológica e os acontecimentos dos últimos lançamentos da Marvel/Netflix, o seriado acompanha Luke Cage (Mike Colter, de Jessica Jones), que fora condenado injustamente a um crime que não cometeu e que, na prisão de Seagate (cenário do curta Marvel Todos Saúdem o Rei), passa por um experimento científico que lhe confere pele impenetrável e força sobre-humana. Após Jessica Jones, Luke começa a trabalhar em uma barbearia no Harlem, em Nova York, evitando encrenca, até não poder ficar impassível diante da ameaça de Cornell Stokes/Boca de Algodão (Mahershala Ali, de House of Cards) – ou “Cottonmouth” – e os “associados” do gângster.
Dividida em dois arcos igualmente empolgantes, a 1ª temporada de Luke Cage se desenvolve com diferentes níveis de antagonistas, como a vereadora Mariah Dillard/Black Mariah (Alfre Woodard, de Memphis Beat) – também chamada de Tia Black –, os capangas Shades Alvarez(Theo Rossi, de Sons of Anarchy) e Comanche (Thomas Q. Jones, de Straight Outta Compton), o policial corrupto Rafael Scarfe (Frank Whaley, de Pulp Fiction), o guarda prisional racista Rackham (Chance Kelly, de Fringe) e o nêmese clássico Willis Stryker/Diamondback (Erik LaRay Harvey, de Boardwalk Empire) – ou Kid Cascavel –, todos vistos nas HQs do Herói de Aluguel. Assim, o programa traz à tona os mais distintos tipos de vilanias que assolam a sociedade nos dias de hoje.
Porém, os bandidos não são os únicos a surgir no caminho do Poderoso, uma vez que Luke conta com o auxílio do barbeiro Pop (Frankie Faison, de Banshee) – que faz de seu salão um local para que os jovens vejam bons exemplos –, Bobby Fish (Ron Cephas Jones, de The Get Down) e, num flashback da prisão, Pavio-Curto (Craig muMs Grant, de Oz). Além do retorno de Claire Temple (Rosario Dawson, de Demolidor e Jessica Jones) – cada vez mais próxima de se tornar a vigilante Enfermeira Noturna –, há a estreia da detetive Misty Knight (Simone Missick, de Wayward Pines), que assume o protagonismo nas tramas principais e secundárias e é facilmente encontrada nos gibis de Luke Cage e Punho de Ferro.
Filmada nas ruas do Harlem, o seriado faz um tour pelo bairro conhecido por concentrar a população afro-americana, mostrando com frequência a Malcom X Boulevard e Lenox Avenue, os parques Jackie Robinson, Marcus Garvey e Mount Morris e o famoso Apollo Theater, o que aproxima Cage ao local e amplia o senso de comunidade. Como nos quadrinhos, é comum ver o protagonista circulando a pé pelos quarteirões da região, pelos quais encontra figuras como Dapper Dan, o ícone da moda “harlemita”, e Method Man (que, inclusive, canta o rap do Luke Cage), do Wu-Tang Clan.
“É algo poderoso ver um homem negro que é à prova de balas e destemido”, Method Man
https://www.youtube.com/watch?time_continue=134&v=HMvMgsUOmXk
Idealizada por Cheo Hodari Coker (roteirista de Notorious B.I.G.: Nenhum Sonho é Grande Demais), a série oferece identificação com o público ao apresentar um protagonista negro, que anda por um bairro pobre e se depara com problemas reais, como violência policial, políticos sujos, organizações criminosas dominando as ruas, desestruturação da família e a falta de oportunidades. Socialmente engajada, Luke Cage se destaca no aprofundamento na questão das tensões raciais nos EUA, com homenagens a Trayvon Martin (o garoto é um dos motivos por que Luke usa um capuz, como diz Mike Colter no vídeo abaixo), que foi morto por um policial em 2012 por “parecer suspeito”, críticas ao sistema discriminatório e uma fala que remete ao movimento Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”, em tradução).
Entretanto, o programa também faz tributo a ícones da cultura negra, como Malcom X, Martin Luther King, Tupac, David Dinkins (o primeiro prefeito afro-americano de Nova York), o ator Richard Roundtree (Shaft), Beyoncé, Prince, Michael Jackson, o educador Geoffrey Canada, o compositor Duke Ellington, o pianista Count Basie, o poeta Langston Hughes (um dos líderes do movimento artístico “harlem renaissance”, que serve de referência para o projeto Renascimento do Novo Harlem, de Mariah Dillard), a empresária Madam C. J. Walker, os políticos Shirley Chisholm e Adam Clayton Powell Jr., e os escritores Ralph Ellison (autor de Homem Invisível), Walter Mosley, Chester Himes, Donald Goines (dos livros de Kenyatta) e Zora Neale Hurston. Também são citados os astros do basquete Michael Jordan, Kobe Bryant, LeBron James, Derek Fisher, Charles Oakley, Patrick Ewing, Anthony Mason, John Starks, Kevin Ollie, Doc Rivers, Robert Parrish, Bill Russell, K. C. Jones e Cheryl Miller, e os boxeadores Muhammad Ali, Mike Tyson e Floyd Mayweather Jr..
Primeiro ator a interpretar Luke Cage em live-action, Mike Colter – que assumiu o papel do herói em Jessica Jones –, traz uma versão contemporânea do personagem, com uma atuação que, sem exageros, não deixa dúvidas de que se trata do alter ego de Carl Lucas. Embora se afaste do conceito de “Herói de Aluguel” – que era inovador em 1972, quanto Cage foi concebido por Archie Goodwin, John Romita Sr., George Tuska, mas poderia ser visto como algo pejorativo agora –, a expressão “Hero for Hire” (ou “I’m not for hire”) surge em alguns diálogos, assim como o bordão “Santa mãe de Deus” (ou “Sweet Christmas”, no idioma original) e os apelidos de “Poderoso” (“Power Man”, em inglês) e “À Prova de Balas”. Além disso, no sétimo episódio, Luke veste o traje clássico dos quadrinhos.
Conectada ao Universo Marvel na TV e nos cinemas, a atração menciona Homem de Ferro, Thor, Capitão América, Hulk, Jessica Jones, Matt Murdock (vulgo Demolidor), Wilson Fisk, Frank Castle (o Justiceiro) e Justin Hammer (de Homem de Ferro 2) e conta com as presenças de Turk Barrett (Rob Morgan, de Demolidor), chamado de Tucão nas gibis, o advogado Blake Tower (Stephen Rider, de Demolidor) e a participação em áudio de Trish Walker (Rachael Taylor, de Jessica Jones). Já entre as novidades estão a introdução de Soledad Temple (Sonia Braga, de Aquarius), a mãe de Claire, e descoberta sobre o passado de Reva Connors (Parisa Fitz-Henley, de Midnight, Texas), a falecida esposa de Luke, e os experimentos do Projeto CRISPR, conduzidos pelo Dr. Noah Burstein (Michael Kostroff, de The Wire).
Magistralmente inserida no Harlem, Luke Cage faz uso dos cenários, iluminações e a linguagem para captar o estilo local e, com a trilha sonora que inclui soul, blues, R&B, hip hop e rap, alterna entre retratar o momento atual e recriar todo o clima das obras do movimento Blaxploitation (que inspirou a criação de Luke Cage nas HQs), algo que, por vezes, faz o seriado lembrar Shaft (até mesmo o tema de abertura é parecido). Apesar do tom retrô, a produção original Netflix pega personagens estereotipados em suas criações (muitos são da década de 1970) e fundamenta suas personalidades, conflitos e ações com razões sociais, éticas, políticas e financeiras.
Com elenco predominantemente negro, Luke Cage tem atitude para tocar em pontos importantíssimos para o mundo de hoje (racismo, igualdade e respeito), exibe shows de artistas afro-americanos (como Raphael Saadiq, Faith Evans e o DJ D-Nice, para citar só alguns nomes) na boate Harlem’s Paradise, de Cornell Stokes, e homenageia o Gang Starr ao batizar todos os 13 episódios desta primeira temporada com os os títulos das músicas do grupo de rap.
Por fim, atenção para os easter eggs do New York Bulletin (o jornal de Demolidor), Stan Lee e Punho de Ferro!
https://youtu.be/zx3W96hPh0Q?list=PLalmCWWs26Ep7vDm9LPZ_vYWwZeSfoxJc