Um filme tem ganhado os holofotes nas últimas semanas – para o bem ou para o mal – devido às suas treze indicações ao Oscar de 2025. Emilia Pérez está sendo alvo de muitos comentários negativos motivados por diversas controvérsias, tanto dentro como fora das câmeras.
O longa-metragem conta a história de um chefe de um cartel mexicano que contrata uma advogada para ajudá-lo a realizar seu grande sonho: fazer sua transição de gênero. Para isso, finge a própria morte, e começa uma nova vida sob o nome de Emilia Pérez.
Os principais problemas com Emilia Pérez
A trama parece ter de ousada o que tem de criativa, então será que tamanho ódio por parte do público é um exagero? Bem… É um filme que se contextualiza em cima de uma enorme e sensível tragédia do México: as milhares de pessoas desaparecidas pelos conflitos do narcotráfico. Porém, ao mesmo tempo, é dirigido por Jacques Audiard, um europeu que, explicitamente, se recusa a usar atores mexicanos, gravar nas ruas do país, ou quiçá estudar sobre o tema abordado.
Não só isso, mas aborda toda a população mexicana de forma extremamente estereotipada. Quase não se vê homens sem sombreiros, ou mulheres sem vestidos coloridos. É quase como se estivéssemos assistindo a uma caricatura a la Viva – a vida é uma festa, mas sem qualquer sensibilidade pelo tema abordado. Falam de forma estereotipada, se envolvem de forma estereotipada, existem de forma estereotipada; e nisso se entende as falas do diretor, de que “o espanhol é um idioma de países modestos, de países em desenvolvimento, de pobres e migrantes”.

Além disso, Audiard desenvolve sua trama de forma extremamente desrespeitosa, transformando um personagem monstruoso que causou boa parte desta tragédia na personificação literal de uma santa – pasmem – das pessoas desaparecidas. Isso só demonstra sua distância para com o tema, assim como a falta de qualquer empatia por uma tragédia que demarca as ruas de um país inteiro.
Traz uma ideia banalizada e errônea de que, apenas por ser transgênero, a protagonista deveria ser perdoada de todos seus crimes hediondos. Nisso, alimenta ideias preconceituosas e transfóbicas de que há homens que querem “virar mulher” apenas por causa de intenções asquerosas. Toda essa noção é de tamanha superficialidade que torna toda a experiência ainda mais deplorável.
Até que ponto a arte retrocede?
Desta forma, Emilia Pérez se mostra um filme de extremo mau gosto, capaz de irritar todo um povo, que se sentiu atacado e desrespeitado. É o puro suco de eurocentrismo, representando um povo inteiro de forma soberba, vazia, e sem vida, olhando-o de cima e com um falso senso de superioridade.
Tanto criticamos o uso de IA para fazer filmes – e com razão –, mas será que Emilia Pérez seria tão diferente disso? Um filme feito sem qualquer empatia, qualquer empenho o u esforço de se aprofundar nos temas propostos; um filme escrito em arrogância e pretensão; que busca e não alcança nada além de uma beleza fútil, vazia. Por mais controversa e abominável que seja a ideia de uma inteligência artificial fazer um filme por si só, ao menos ela teria um repertório maior do que Audiard.
Mas, claro, não seria possível analisa-lo de forma imparcial? Sem considerar todas as suas polêmicas, ou desrespeitos por parte daqueles que o produziram? Talvez sim, mas será que é esse o nosso papel? Colocar de lado todo o processo de criação da arte, todo o sentimento e dedicação por traz dela? Suas representações, preceitos e ideias?

Pantera Negra, por exemplo, não seria o mesmo filme se a produção fosse toda de homens caucasianos, e se nunca tivessem sequer pesquisado sobre culturas africanas. Ainda Estou Aqui não seria tão aclamado, se o diretor fosse um alemão que ouviu de longe a história de Eunice, nunca tendo lendo o livro ou quiçá falado com Marcelo Rubens Paiva, e colocado apenas portugueses para imitar um sotaque brasileiro, sem jeito. Ao mesmo tempo, filmes musicais sobre a Grande Depressão de 1929 ou o onze de setembro, a explosão da usina de Chernobyl, ou a ditadura militar brasileira não seriam bem vistos, se feitos sem responsabilidade. Por que está sendo diferente com Emilia Pérez?
Emilia Pérez: uma breve análise técnica e imparcial
Mas, bem, analisando com imparcialidade, Audiard entrega um filme fraco, que subestima ao máximo seus espectadores ao entregar tudo da maneira mais banal possível. Tudo é completamente explicado, e exatamente NADA fica para o espectador interpretar por si só.
Tudo o que o personagem está pensando e sentindo, ele vai cantar da maneira mais literal possível. Quando a personagem de Zoe Saldaña fica em dúvida sobre aceitar a oferta do líder do cartel, ela literalmente canta sobre estar em dúvida, explicando todos os motivos, sem dar qualquer brecha para o espectador refletir por conta própria.
Isso torna toda a experiência de Emilia Pérez cada vez mais rasa. A cada vez nova cena, insulta mais e mais o espectador, subestimando sua capacidade de interpretação – até porque não há o que interpretar, tudo está ali da forma mais literal possível: as falas, as músicas, a montagem, tudo.
Desta forma, Emilia Pérez poderia ser aclamado por muitos, mas peca com um diretor insensível, que pouco se importou com o tema poderoso que tinha em mãos. Além disso, a prepotência de um “filme de Oscar” levou-o para um caminho sem espaços para autocríticas, cegando-o de seus próprios defeitos. Acrescentando uma assessoria medíocre no decorrer de uma campanha de Oscar vergonhosa, Emilia Pérez – assim como elenco e diretor – acabou enterrando a si mesmo.
Acabou, portanto, se tornando um filme sobre o México, filmado na França, mas que é odiado e menosprezado por grande parte do mundo. Por fim, Emilia Pérez marcará esta geração – mas não pelos motivos que desejava, pois o povo se lembra. Não importa quantos prêmios ganhe, nada apagará o fardo de sua existência vazia, desrespeitosa e medíocre.