Ácido e inteligente, ‘Barbie’ não veio para brincadeira

Laisa Lima

Poucos fenômenos duram. As ombreiras, popular estilo de vestimenta nos anos 80, tornou-se antiquado; o grunge, gênero musical representado principalmente pela banda Nirvana, não vingou muito além da década de 90; o movimento hippie, decaiu logo após seu apogeu no gigante Woodstock, e por aí vai. Inclusive expressões artísticas caem no ostracismo, a exemplo de filmes que antes eram sucesso, hoje são motivos de chacota. Entretanto, há quem esteja acima do bem, do mal e da ação do tempo: a Barbie. Digna do amor de um mundo inteiro, a boneca, criada em 1959, resistiu durante gerações para que pudesse ser o que é atualmente – basicamente tudo o que bem entender. Porém, faltava um único estágio para que Barbie conquistasse todos os espaços: ser uma pessoa real. Graças ao longa-metragem de 2023 que leva seu nome, esse desejo foi concretizado. 

Em Barbieland, todas as Barbies convivem harmonicamente. Rodeadas por construções de plástico em tons pastéis, contendo, por dentro, itens fidedignos aos objetos que acompanhavam as casas da Barbie, tais bonecas vivenciam um cotidiano tranquilo sendo quem devem ser: a Barbie médica, sereia, advogada, presidente de uma corte, ganhadora de um prêmio Nobel em física, astronauta etc. Todas com a mesma identidade. A Barbie Estereotipada, contudo, percebe mudanças nunca vistas. Loira, branca, magra, de olhos azuis, residindo em sua Dreamhouse e sempre sorridente, a “moça” vivia do jeito em que costumávamos brincar. Até resquícios do chamado “mundo real” chegar e estremecer toda sua perfeição.

Barbie em: ser um ser humano

Assim como para toda criança, uma hora certas fantasias se findam. Para a Barbie central, interpretada por Margot Robbie, estas dolorosas etapas significam ter os pés totalmente no chão (não no sentido figurado), cair sem flutuar do andar de cima de sua casa rosa, pensar em morte e perceber que possui celulites, inerentes a grande parte das mulheres. O desespero da personagem por aproximar-se de um ser humano comum, é tratado, no primeiro momento, como aqueles problemas que todos anseiam ter, visto que estamos diante de um molde de beleza, idealização e fetichismo vivendo em um ambiente sem grandes preocupações. A aura mágica, quase etérea, de Barbieland incomoda pela constante ingenuidade, onde o frescor infantil pauta a forma em que seus moradores se estabelecem como seres sociais. Como algo pode ser tão irretocável? Como pode existir tamanha felicidade? O longa-metragem discorre sobre essas questões referenciado por uma irrealidade leve que aos poucos se transforma em análise acerca do existencialismo.

Porém, até chegar neste ponto, quando Barbie finalmente conhece o mundo real a mando da Barbie Esquisita (Kate McKinnon), a fim de encontrar a menina que lhe detém e retornar a seu cotidiano sublime, o clima é divertido, tal qual um lazer de criança. O exagero e a artificialidade são toques indispensáveis para que a fábula de ‘Barbie’ esteja tão viva, embora o final seja uma queda ainda mais brusca da boneca em seu encontro com um admirável (ou nem tanto) novo mundo. À princípio, a Terra não parece tão ameaçadora, dado que já estamos acostumados com todo e qualquer tipo de absurdo. Para Barbie, os inúmeros assédios sofridos, além dos constrangedores olhares enquanto patina por Los Angeles, bastam para que o baque do contraste com seu universo seja extremamente forte, ainda mais quando ela percebe que, por aqui, os homens encabeçam o controle da sociedade.

Questionamentos para além da Barbieland

Adentrando nos enquadramentos do feminismo, apesar de Barbie reproduzir um estereótipo inalcançável, a ideia é fazer da produção a mais representativa possível. Logo, quando a personagem observa a Terra com um olhar incrédulo sobre a posição da mulher, o misticismo de perfeição se rompe. Descobrimos, então, que Barbie foi gerada para empoderar, não segregar. A Mattel, empresa fundadora da boneca, liderada, no filme, por Will Ferrell, atiça a noção de que transitar entre os polos nunca é bom, incluindo coletivamente, lembrando ao espectador que a ficção, ao passo que pode aumentar uma situação, é capaz igualmente de fazer entender o quão absurda ela é nas limitações reais. A maneira como o patriarcado, repetido termo ao longo de ‘Barbie’, e o poderia masculino são visados é uma ótima questão.

Um Ken qualquer

Por falar em masculinidade, temos o Ken de Ryan Gosling. Apaixonado por Barbie, o personagem não sabe se descrever sem a protagonista, contanto que parte para o mundo real ao seu lado sem nem ser convidado. Mas é aqui que Ken se corrompe pelo imaginário viril: tomado por um vácuo interno, o mutável Ken vira um projeto de ser humano que pouco consegue se imaginar. Geralmente, a dependência emocional permanece na perspectiva feminina, mas não em “Barbie”. Gosling transita entre os Kens tendo o maior tempo de tela, mas sofre por não ter o que mostrar. E é isto que torna-o tão interessante. A parte da comédia também resvala diretamente no boneco, responsável por algumas das principais cenas cômicas do longa-metragem.

A diretora Greta Gerwig acerta, mais uma vez, em utilizar da sensibilidade para não provocar demais a audiência, transpondo os horrores vividos na realidade em dramas simples, porém tocantes. A atmosfera originária não se perde, indo na cronologia de algo suave, como demonstrado no início do filme, e retratando igualmente tópicos pertinentes, como envelhecimento, militância, solidão e crescimento. Contudo, para dar mais vazão à Barbie, Ken e suas trajetórias, boas histórias ficaram ou mal contadas ou de escanteio. É caso do núcleo de Glória (America Ferrera) e sua filha, e Alan (Michael Cera), o único na Barbieland que não se autodenomina Ken. 

Uma Barbie antes nunca vista

Barbie‘ é uma explosão de cores, com alma pura e um coração que não se desgasta. Margot Robbie, com trejeitos de boneca e um carisma que lhe é peculiar, revela uma outra esfera das Barbies, na qual não são reproduções capitalistas inalcançáveis, mas sim auxiliares no processo de tomada de confiança da mulher. Ainda que a diversificação das personagens pudesse tomar um rumo mais profundo, explorando melhor o nicho das Barbies divulgadas escassamente, a produção ganha por modernizar e ressignificar o modelo de condução da boneca daqui para frente, haja vista a conquista de várias acepções que adquiriu com o filme. E isso nenhum Ken retirará. De fato, ‘Barbie’ é muito mais que um passatempo.

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